Carta 8 - improviso faz parte do espetáculo
São Paulo, 25 de abril de 2025
Gabi,
Eu nunca soube rezar o credo, a minha pouca educação católica só me rendeu decorar o pai nosso. Aprendi quando criança, nem lembro como, mas foi na adolescência que fiz um uso mais efetivo. Descobri que ir a missa era um jeito de sair aos domingos (em um horário que era proibido para outras atividades sociais) e encontrar os amigos. Comecei a fazer isso toda semana. Lembro dos protestos indignados da minha irmã, “ela só vai a missa pra poder sair domingo de noite, eu não posso sair, por que ela pode?”. Minha mãe dava de ombros e eu ficava quieta, mas minha irmã tinha entendido tudo. Provavelmente minha mãe também. Até hoje faço uso do pai nosso quando tenho paralisia do sono. Acordo de madrugada tendo certeza que é o capeta que tá me chamando, repito pai nosso sem parar na minha cabeça enquanto sonho e realidade se misturam naquele limbo desesperador.
Eu fiquei refletindo sobre o que você me contou da experiência no circo, o trapézio e o medo que dá de assistir. Será que as pessoas que sabem realizar aqueles movimentos (os outros artistas de circo, atletas, ginastas) também sentem medo ao assistir? Pelo menos uma pontinha? Ou será que, ao saber como o movimento é feito, onde está a segurança e o perigo, o medo simplesmente desaparece? Lembro do meu ex que fazia movimentos muito loucos com o próprio corpo e me assustava muito. Eu ficava com a espinha gelada ao ver ele saltando, virando, pulando, e ele 100% nem aí. Sempre achei ele muito imprudente. Olhando mais de longe, será que não era apenas uma confiança no próprio corpo?
Será que é isso que faz o medo do salto desaparecer? Ou virar uma coragem meio absurda? Ter essa certeza, não que alguém vai me pegar, ou que o chão não vai se abrir, mas que, independente do que aconteça, meu corpo vai me salvar. Meu corpo vai saber o que ele tem que fazer, de um jeito que eu não sei qual é, pois nunca saltei, nem me joguei e hoje tenho medo até de pular de ponta na piscina. Essa fé, de novo a fé, no corpo. E te respondendo, eu tenho muita fé que você vai acertar todos os movimentos. E mesmo aqueles que talvez não saiam perfeitos como você ensaiou, como era para ser a sua coreografia, mesmo que a música trave no meio do espetáculo, eu tenho certeza que você vai saber improvisar lindamente um novo passo, uma nova dança, um novo movimento, um novo salto. Arrisco dizer que pode ser ainda mais bonito do que o roteiro inicial.
“It’s the season of change
And if you feel strange
It’s probably good”
Por aqui não tenho dado muitos saltos, as vezes dou alguns pulinhos. Discretos e bem seguros, eu gosto muito dessa ilusão da segurança. E sim, eu sei que é uma ilusão. Acho que uma ilusão consciente é melhor do que uma realidade que a gente se recusa a ver.
Bom final de semana, amiga. Aproveite a festinha por aí.
Um beijo com carinho,
Laís
🥹
Eu tenho gatilhos com ilusões conscientes 🥺 Não acho que elas vão ser melhores que a realidade, mesmo a que a gente não queria ver. O melhor é termos fé no nosso corpo e ver de frente a realidade, tendo a certeza que, independente de quais forem, nossos movimentos serão certos.